Mais um que entende que há algo de errado com os bancos, coisa que muitos (como a Igreja Católica) dizem há séculos. Desta vez é Adair Turner, ex-chefe da Agência de Controle Financeiro do Reino Unido.
Do Valor Econômico de hoje:
A explosão de endividamento e o QE
Por Gillian
Tett
O perigo dos vícios é que eles tendem a tornar-se cada vez mais compulsivos. Essa poderia ser uma moral derivada dos eventos desta semana. Poucos dias atrás, eram muito altas as expectativas de que o Fed (Federal Reserve, o banco central dos EUA) estivesse prestes a reduzir suas compras correntes mensais de títulos no equivalente a US$ 85 bilhões. Mas, o Fed acabou piscando, em parte por estar preocupado com o fato de que os mercados já vinham reagindo excessivamente à mera consideração de uma possível mudança de política. Diante das opções - frear o vício ou fornecer mais uma dose da "droga do alívio quantitativo" (QE, em ingês) o Fed preferiu a última.
Sob
diversos ângulos, isso é compreensível; os dados econômicos reais ainda estão
fracos. Mas à medida que os investidores tentam entender o que o Fed fará (ou
não fará), vale a pena refletir sobre um oportuno discurso feito recentemente
por lord Adair Turner, ex chefe da agência reguladora do Reino Unido. Conforme
Turner disse na semana passada a economistas suecos, e repetiu para autoridades
de bancos centrais e economistas em Londres nesta semana, a verdadeira história
por trás da recente dramática saga financeira - a dança dos mercados em torno
do QE ou a crise do Lehman Brothers, cinco anos atrás - é que as economias
ocidentais tornaram-se viciadas em níveis cada vez mais altos de endividamento.
Até que
esta situação mude, é delirante pensar que alguém tenha realmente
"consertado" o mundo financeiro ocidental com as reformas pós-Lehman
ou tenha criado um crescimento verdadeiramente saudável, insistiu Turner. Dito
de outra forma - embora ele não tenha expresso com tanta franqueza -, uma
maneira de interpretar a dança em torno do QE nesta semana é que as autoridades
econômicas continuam a dar sustentação a um sistema financeiro que é (na melhor
das hipóteses) estranho e (na pior) instável.
Essas
críticas, evidentemente, não são novas: economistas independentes, tanto na
extrema-direita como na extrema-esquerda, têm feito isso há anos. Mas o que
torna a contribuição de Turner notável é que, até recentemente ele esteve no
centro do sistema financeiro mundial - e do processo de reforma pós-Lehman -,
que ele agora considera tão falho. E dessa perspectiva ele destaca algumas
contradições curiosas. Considere o que fazem os bancos. Um livro-texto padrão
de economia, escreve Turner, afirma que os bancos existem para "captar
depósitos de poupadores e, então conceder empréstimos a tomadores"... e
"primordialmente emprestar a empresas e empreendedores para financiar
projetos de investimento". Assim, "a demanda por dinheiro é um
aspecto crucial" em termos de crescimento.
Mas essa
descrição é uma ficção, diz ele. O motivo? Ele calcula que hoje, no Reino
Unido, apenas 15% do total de fluxos financeiros é efetivamente canalizado para
"projetos de investimento"; o restante dá sustentação a ativos
empresariais, imobiliários ou finanças pessoais não garantidas, existentes para
"facilitar a estabilização do ciclo de vida do consumo".
Algum financiamento
não destinado a investimentos é socialmente útil, admite Turner, mas não em
largas doses. No setor imobiliário, por exemplo, a maioria do crédito apenas
"financia a aquisição de casas já existentes", em vez de investimento
em novas casas (ou seja, construção civil). E o que é realmente notável sobre a
parcela de não investimento nesse cenário financeiro é que ele explodiu; como
resultado, como também ressaltou Andy Haldane, do Banco da Inglaterra, num
debate em Londres na semana passada, a dimensão do crédito para pessoas físicas
em relação ao PIB dobrou para 200% nos últimos 50 anos.
Isso torna
ridículas as histórias contadas nos livros didáticos existentes e nas premissas
oficiais para as políticas monetárias. Mas a explosão do crédito tem outra
implicação peculiar, comentam Haldane e Turner: como o crédito total continua
subindo inexoravelmente, ao mesmo tempo em que o crescimento continua
inalterado, a "produtividade" do dinheiro está caindo, assim como
aumentou a propensão do sistema superalavancado de exibir expansões aceleradas
seguidas de colapsos repentinos, em meio a mudanças no ânimo do investidor.
Então,
haverá alguma solução? Turner oferece algumas ideias. Ele defende uma revisão
radical dos modelos intelectuais que os economistas usam (inclusive,
presumivelmente, daqueles pertencentes a bancos centrais). Ele também quer que
as autoridades econômicas reduzam deliberadamente o crédito. Assim, o arcabouço
de Basileia 3 para os bancos deveria incorporar exigências de capital
contracíclicas duras, argumenta ele, e os reguladores deveriam voltar a incluir
"entre os instrumentos de política, exigências quantitativas de reservas,
que limitam mais diretamente os multiplicadores bancários e, assim, o
crescimento do crédito, do que aumentos nas exigências de capital".
Ora, como
sabemos, isso não está acontecendo; ao contrário, os bancos britânicos estão
sob pressões políticas para que ofereçam mais financiamento habitacional, pois
os preços das casas atingiram novos picos, e o Fed está tão determinado a dar
um empurrão no mercado imobiliário americano que continua devorando esses
títulos lastreados em financiamento habitacional. Claro, a linha política
oficial é que essa é apenas uma medida temporária: quando houver crescimento
forte e sustentável isso cessará.
Mas não
aposte nisso para breve; pelo menos não em um mundo onde os preços dos ativos e
os espíritos animais são agora tão dependentes do dinheiro barato, e tão
cruciais para estimular o crescimento. De qualquer forma, em meio às
comemorações dos investidores pela decisão envolvendo o QE, nesta semana, eles
fariam bem em lembrar a estimativa de 15% para os investimentos produtivos. E
seria fascinante se alguém tentasse descobrir qual é essa proporção, na
economia americana, hoje. Especialmente se esse cálculo vier do Fed. (Tradução
de Sergio Blum)
Gillian
Tett é comentarista de finanças e mercados, e editora- assistente do FT